Então

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Procissão

Marisa Monte - Segue o Seco



Não é possível se eliminar um fenômeno natural. As secas vão continuar existindo. Mas é possível conviver com o problema. O Nordeste é viável. Seus maiores problemas são provenientes mais da ação ou omissão dos homens e da concepção da sociedade que foi implantada, do que propriamente das secas de que é vítima.

O semi-árido é uma região propícia para a agricultura irrigada e a pecuária. Precisa apenas de um tratamento racional a essas atividades, especialmente no aspecto ecológico. Em áreas mais áridas que as do sertão nordestino, como as do deserto de Negev, em Israel, a população local consegue desfrutar de um bom padrão de vida.

Soluções implicam a adoção de uma política oficial para a região, que respeite a realidade em que vive o nordestino, dando-lhes condições de acesso à terra e ao trabalho.

Medidas estruturadoras e concretas são necessárias para que os dramas das secas não continuem a ser vivenciados.

Esse termo vem sendo utilizado nos últimos anos para explicar o que aconteceu com os investimentos realizados pelo governo federal; atenderam os interesses de uma minoria, que se apropriaram ilicitamente das verbas ou as utilizaram em beneficio próprio. Essa "indústria" aumentou ainda mais as disparidades entre proprietários e trabalhadores rurais. Essa situação serviu para preservar o coronelismo e muitas vezes reforçar o clientelismo. Já naquela época, tudo indicava que qualquer solução para o problema teria, necessariamente, que passar por uma reformulação do sistema de posse e uso da terra, o que era, e continua sendo, em larga medida, inaceitável para os grandes proprietários de terra. Entrava em cena o poder das elites locais com o objetivo de bloquear qualquer ação do poder central que pudesse vir a ameaçar o statu quo.

Os problemas sociais existem em todo o Nordeste, mas a culpa pela miséria da região sempre recaiu sobre o fenômeno das secas. De fato, elas muitas vezes inviabilizam as atividades econômicas no sertão, dizimando o gado e fazendo com que os sertanejos deixem suas terras em busca de melhores condições de vida. Mas a seca não é a única responsável por toda a situação. Questões como a distribuição de renda e de terras costumam ser deixadas de lado nas discussões. Grupos políticos e econômicos aproveitam-se do flagelo da região em benefício próprio. Divulgando uma situação de calamidade pública, essa elite consegue ajuda governamental – como anistia das dívidas, verbas de emergência e renegociação de empréstimos. Tais auxílios nem sempre beneficiam a população afetada pela estiagem. Muitas vezes, o dinheiro público é usado para a construção de açudes e para o desenvolvimento de projetos de irrigação. Tudo isso caracteriza a chamada "indústria da seca", ou seja, uma série de medidas que eternizam o problema para impedir que o auxílio desapareça.

O sertão nordestino sempre conviveu com a seca, embora, até meados do século XIX, seus governantes e a elite local não a encarassem como um problema. As atenções na época voltavam-se para a Zona da Mata e para os engenhos de açúcar. Na segunda metade do século XIX, quando o café plantado no Sudeste se transformou no principal produto de exportação do país, dirigentes e proprietários da região logo previram o término de seus dias de glória. Por isso, voltaram seus olhos para a seca e para a miséria do sertão. Afinal, em função dos problemas ali existentes, eles poderiam pleitear auxílio ao governo central. Embora sofresse com a seca há tempos, o sertão transformou-se, a partir do século XIX, na principal imagem do atraso do Brasil.

Antes da ocupação portuguesa, as secas sucediam-se com maior ou menor intensidade. A pecuária acentuou seus efeitos e a Grande Seca (1791 a 1793) tornou a vida na região bem mais difícil. A vegetação não se recuperou. Homens, mulheres, crianças e bois morreram em grande número. Além disso, o Rio Grande do Sul passou a vender seu charque aos mercados que antes adquiriam a carne-seca sertaneja.

Durante a estiagem de 1877 a 1880, pela primeira vez o governo procurou instituir uma política de salvação para a região. D. Pedro II, encantado com uma visita que fizera ao Egito, mandou importar camelos do Saara, pois pretendia criá-los para salvar o sertão. Os problemas, entretanto, eram muito mais graves. Um número de sertanejos quase quatro vezes maior do que o da população de Fortaleza ocupou a capital cearense, buscando fugir da seca. O resultado disso foram epidemias, fome, saques e crimes. Com a seca criou-se o conceito do retirante – o homem que deixa sua terra para escapar dos efeitos da estiagem.

Na estiagem seguinte, em 1915, para impedir que os retirantes se dirigissem à capital, o governo cearense criou campos de concentração nos arredores das grandes cidades, nos quais recolhia os flagelados. A varíola fez centenas de mortos no Campo do Alagadiço, próximo a Fortaleza, onde se espremiam mais de 8 mil pessoas na seca de 1915. A falta de condições sanitárias e de comida completou o trágico quadro.

A seca de 1932 foi tão catastrófica quanto a de 1877. Foram organizados sete campos de concentração no Ceará, onde ficaram reunidos mais de 105 mil retirantes. Eles eram recrutados para trabalhar de forma compulsória nas obras públicas. Nas secas seguintes, o governo abandonou a formação dos campos de concentração e começou a estimular o sertanejo a abandonar em definitivo suas terras. Passou a planejar a migração maciça dos sertanejos para o oeste, a fim de povoar os sertões do Mato Grosso. Essa retirada ficou conhecida como a "Marcha para o Oeste". Pelo Censo de 1950, verificou-se que mais de 2 milhões de nordestinos haviam migrado para outras regiões do país. Entre 1950 e 1980, as grandes metrópoles do Sudeste tornaram-se o destino da maioria desses retirantes.

Os municípios nordestinos passaram a contratar, em 1979, retirantes para trabalhar em obras públicas. Mesmo assim, o problema do sertanejo jamais foi solucionado. Só em 1993, a Comissão Pastoral da Terra identificou 146 ações de multidões (invasões ou saques) em 55 cidades do Ceará.

Depois de séculos observando as condições do clima, os sertanejos concluíram que, se a chuva cair até 19 de março, haverá água suficiente para suas plantações; caso contrário, o ano será seco. Pelo calendário católico, esse é o Dia de São José, que por isso se tornou objeto da devoção popular sertaneja. Gilberto Gil compôs, em 1964, a letra de Procissão. Em seus primeiros versos, ele reproduz parte da prece na qual os sertanejos pedem a mediação do santo para trazer a chuva.

Gilberto Gil - Procissao

Nenhum comentário: