Então

domingo, 21 de novembro de 2010

O testamento de Wilson Bueno





Novo número da revista Coyote traz inéditos do autor assassinado em maio, recuperados por seu primo


Elegante e ético, o escritor Wilson Bueno (1949-2010) manteve-se a vida inteira sempre muito atento à produção literária dos outros poetas e escritores. E costumava ser generoso na acolhida do trabalho alheio. "A cada novo número da revista Coyote ele sempre nos mandava um e-mail com comentários sobre a edição, sempre incentivando a continuidade da revista", conta o poeta Ademir Assunção, falando sobre o colega, assassinado em sua casa em 31 de maio deste ano.
É justamente a revista Coyote que traz, na próxima semana, os últimos poemas e contos inéditos do escritor curitibano, organizados pelo primo do autor, Luiz Carlos Pinto Bueno. Foi Luiz quem encontrou o corpo do poeta 24 horas após o crime. Fora assassinado aos 61 anos, a facadas, na cadeira de trabalho. O choque da descoberta está registrado também em um texto curto. "O grande inventor de línguas e estórias, com a garganta aberta dos dois lados, é o centro da cena do crime de latrocínio de que foi vítima", escreveu Luiz Carlos.
A Coyote nº 21 sai com esse testamento literário de Wilson Bueno - oito poemas do livro inédito 35 Poemas de Amor (leia três deles abaixo) e três textos do livro inédito Ilhas, de prosa. "Vivendo sempre, de forma muito intensa, sensível, praticava o lúdico do desejo e dava vazão à pulsão de vida. Vivia o amor em toda a sua plenitude, ignorou que, lado a lado, pulsão de vida e morte coexistem e fazem parte do jogo, roleta russa, jogos da infância que invadem a alma, travestidos, e podem nos fazer, protagonistas do desejo, caçadores de aventura num vida meio bandida, carnal, descuidada, infantil, em que as vezes traídos pela sorte quedamos feridos de morte", diz o texto do primo de Bueno.
Os poemas publicados pela Coyote mostram um autor delicado, romântico, atento à imagem, mas também às visões. "Amor, de tão cortês, é um algodoal de líquens/ E plana, suspenso, entre o sonho e o sonho". Simples, ao mesmo tempo que erudito e sofisticado: "Sombras atrás das quais me escondo pasmo/ Mortal, na noite, Amor, o som da geladeira".
Lugares remotos. Já no livro também inédito As Ilhas, Bueno se projeta a lugares remotos para trabalhar uma prosa elegante, tratando de ética e limites num universo insular: a revista publica os textos sobre as ilhas de Larsen (Alasca), Eólia (Grécia) e Sagres (Portugal).
Nascido em Jaguapitã, interior do Paraná (400 km de Curitiba), Wilson Bueno foi poeta, jornalista, escritor e editou o jornal Nicolau, importante na divulgação de autores do País todo nos anos 1980. Foi colaborador de O Estado de S. Paulo e de O Estado do Paraná, entre outras publicações. Como escritor, integrou uma geração notável, que teve ainda Cristóvão Tezza, Jamil Snege e (mais velho que estes) Valêncio Xavier. Foi autor, entre outros, de Bolero"s Bar (1986), Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), Pequeno Tratado de Brinquedos (2003), Cavalo (2000) e Amar a Ti Nem sei se Com Carícias (2004).
Em junho, o caderno Sabático já antecipara trecho do último romance de Bueno, Mano, a Noite está Velha, previsto para ser lançado em 2011 pela editora Planeta. Ao todo, terá deixado 14 livros. Entre outras distinções, foi finalista em 2008 do Prêmio São Paulo de Literatura.
O assassino confessor de Wilson Bueno foi o garoto de programa Cleverson Petreceli Schimitt, de 19 anos, após desentendimento por uma dívida de R$ 130. Depois do crime, Schmitt ainda teria roubado celulares e máquina fotográfica. O assassino deve ir a júri popular nos próximos dias.
Além dos inéditos de Wilson Bueno, a Coyote trará poemas do espanhol Leopoldo María Panero, um conto inédito de João Gilberto Noll, uma entrevista com a crítica norte-americana Marjorie Perloff, aforismas de Franz Kafka e um ensaio de Jair Ferreira dos Santos, O Pavão é uma Galinha em Flor. "A poesia contorna a economia. É criação improdutiva como a Festa, o Amor. Não é mercadoria, ignora o interesse, está à margem do cálculo", escreve Santos.
Já os aforismas de Franz Kafka, em tradução de Silveira de Souza, são uma seleção aleatória de um conjunto. O material seria, segundo o tradutor, oriundo do caderno manuscrito no qual Kafka deixou 109 "aphorismen", relativos a um período compreendido entre 1916 e 1918. "Foi dada a eles a escolha de se tornarem reis ou mensageiros de reis. Com a ingenuidade das crianças, todos escolheram ser mensageiros. Eis porque só existem mensageiros, que correm pelo mundo e, como não há mais reis, gritam uns para os outros mensagens que não têm mais sentido".
A revista Coyote tem 52 páginas e custa R$ 10. É uma publicação da Kan Editora, com distribuição nacional pela Iluminuras. É vendida em livrarias ou direto com a Editora Iluminuras (tel. 3031-6161 ou pela internet: www.iluminuras.com.br)
TRÊS POEMAS

Tão grande o Amor que nos abraça
O tempo, a infância, prados e pinheiros
Agora em que sei que estás morrendo
E morrem contigo as gastas ilusões,
O irmão já morto, vosso útero.
E de mim os sonhos loucos.
Tudo é a antevisão do silêncio longo
Que há, meu Deus!, de separar-nos.
Dissolução da ausência, do corpo, da casa
Morrem bromélias, alamandas e os cactos
De vosso jardim, amor, Mãe, tão casto,
Aqui onde cato de mim caco a caco.
Cai-me ao colo Amor de súbito
Um susto, um esgar, um bramido.
Estertor de tudo - desamor Amor ao avesso?
Quero-vos lúmpen, maltrapilha, campesina
Quero-vos riacho e manso açude.
Amor, entanto, vocifera pontiagudo
Mural de rochas e lascas e espelhos e cardumes
A fingir do Amor - casta figura? -
O Desamor em pêlo, às turras,
Aos vozeios, facas, murros, unhas
A alvoroçar o silêncio de agulhas.
E veio a chuva, Amor,
Molhar nossas feridas,
De sermos mais do que sozinhos
Dois entes da cicatriz reféns e prisioneiros
Nos edredons de nossa cama
Travesseiros, lençóis, miasmas
As tuas saudades minhas
O moreno olor de teu cabelo,
Sombras atrás das quais me escondo pasmo.
Mortal, na noite, Amor, o som da geladeira.
Do livro inédito "35. Poemas de Amor" 

fonte: Jotabê Medeiros - O Estado de S.Paulo


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