sábado, 2 de agosto de 2008
Fidel Castro
Retirado por longos meses do governo, atacado pelos males da idade longeva, Fidel Castro, o chefe inconteste da Revolução Cubana, no poder faz quase meio século, publicou no dia 18 de fevereiro de 2008 uma carta de renúncia. Abdicou da situação excepcional em que gozava no comando das coisas da ilha. Com isso encerrou-se um dos períodos mais efervescentes da história da América Latina recente, um titã recolhe-se para o descanso final.
O Colossus de Goya
"Colossus" (Tela de F.Goya, 1808-1812)
Há duzentos anos, em 1808, vendo sua Espanha ocupada pelas forças do Império Napoleônico, Francisco Goya começou a pintar o Colossus, obra que arrancou admiração e interrogações. O que representaria aquele gigante barbudo e seminu, esculpido em claro-escuro, que se ergue em meio a uma disparada de todo um povo? Para alguns entendidos na iconografia do El Surdo tratava-se de um titã representativo da fúria espanhola indignado com a violação do país pelos dragões do marechal Murat.
Enquanto o pânico corria solto, somente ele, em meio do nada, fazia frente ao inimigo que não está visível no quadro. Em baixo, na tela de Goya, carroças levando gente esbaforida, outras a pé, tratavam de se por a salvo.
De certo modo, a mesma simbologia pode se aplicar à crônica de Fidel Castro. Numa América Latina permanentemente humilhada pelo enorme poderio ianque, que, desde a Guerra de 1846-8, interviera militarmente mais de vinte vezes no México, América Central e no Caribe, somente ele o encarou de vez e sobreviveu. Ele é o Colossus de Goya redivivo.
Nacionalistas abatidos ou exilados
Farabundo Marti fora fuzilado no final da La Matanza, em El Salvador, em 1932, Augusto Sandino, o foi em 1934, o peruano Haya de La Torre, da nacionalista APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), desde 1923 foi forçado a uma vida de exilado, Victor Paz Estessoro, fundador do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) foi impedido de continuar no governo da Bolívia por direta exigência da embaixada americana de La Paz, Getúlio Vargas matou-se em 1954 denunciando na sua Carta Testamento "a campanha subterrânea dos grupos internacionais", enquanto que um pouco antes dele o nacionalista presidente Jacobo Arbens fora deposto na Guatemala por um golpe patrocinado pela CIA. Por último, em 1955, fora-se Perón, um dos derradeiros caudilhos do nacionalismo latino, derrubado pelos tanques do exército argentino. Era em meio a esse rosário de fracassos que Fidel Castro se criou e se insurgiu, assumindo o mesmo porte da figura de Goya.
Um Quixote redivivo
Nas ações dele sempre houve um traço de quixotismo ou de alucinação. Atacar o quartel de Moncada em 26 de julho de 1953, foi um deles. Desaforar a ditadura Batista em pleno tribunal onde o condenaram foi outro. Partir do México com um bando de revolucionários num iate superlotado, o Gramna, e conseguir refugiar-se nos altos da Sierra Maestra, ao sul da ilha de Cuba, tratou-se de loucura pura.
Dali enfrentar por três anos o exército do ditador apoiado pelos norte-americanos era apostar em terminar a vida com um tiro na cabeça ou num calabouço da ilha dos Pinos. Todavia, contra qualquer lógica ou avaliação racional, tudo deu certo. Batista fugiu no 1º de janeiro de 1959 e a ilha de Cuba caiu-lhe nas mãos.
Mas nada disso chegou perto da dimensão alcançada por ele ao ter-se oposto cada vez mais ao todo-poderoso império ianque. Para a maioria dos latino-americanos, acostumados a ver seus próceres fazendo de tudo para cair no agrado de Washington (basta lembrar a foto do baiano Octávio Mangabeira parecendo beijar a mão do general Eisenhower), Castro assemelhava-se a um doido assombroso. Havana, um asilo de lunáticos barbudos apoiados por multidões delirantes.
Agigantou-se ainda mais aos olhos do continente quando venceu os milicianos de Batista que tentaram desembarcar na baía dos Porcos em abril de 1961, em Cuba, com amplo apoio do presidente Kennedy. Pior, fez os ianques pagarem-lhe um resgate pelos mais de mil homens que ele capturara. Naquelas alturas, ainda que isolado pelo embargo econômico imposto pelo vizinho, tornou-se o cubano mais famoso do mundo, ofuscando inclusive José Martí, o herói nacional que tombara em 1898.
Isso fez com que ele acelerasse a purgação de tudo aquilo que representasse a presença norte-americana na ilha (que começara com a ocupação militar em seguida à vitória na Guerra Hispano-americana de 1898). Descolonizar o cubano, desanglicizá-lo, virou tarefa de honra da revolução de 1959, daí o expurgar das palavras inglesas da fala diária das rádios, dos jornais e da televisão, suprimir com os costumes importados dos Estados Unidos, expropriar seus hotéis, fábricas, fazendas de açúcar e de gado, além de chutar para fora a máfia dona dos cassinos de Havana, e com ela a maior parte do crime organizado que por lá reinava desde a Conferencia dos Capi de Havana de 1946.
Foi como se estivesse atrás de restaurar a pureza dos tempos hispânicos, quando podia se falar, ainda que com a pronúncia malemolente do cubano, um castelhano castiço e ler Cervantes direto, sem precisar consultar um dicionário.
by Pepito Junior Carlos
Porta-voz do Terceiro Mundo
O apogeu de Fidel Castro, todavia, chegou durante a crise dos mísseis de outubro de 1962, ocasião em que, direta ou indiretamente, El Comandante Supremo viu-se num centro de um torvelinho que seguramente poderia ter desencadeado a Terceira Guerra Mundial, aquela que segundo Einstein nos teria feito voltar às cavernas. Líder algum de um país tão minúsculo provocara em toda a história tal estrago nas relações internacionais. Passou a ser a voz injustiçada do Terceiro Mundo.
Quem ele não conseguiu seduzir foi a classe média cubana. A crescente inclinação dele pelo comunismo – resposta ideológica dele à pressão norte-americana – fez com que ela desertasse em massa de Cuba, indo em peso para Miami. Com ela também se foram os tempos de liberdade. A lua-de-mel da revolução se encerrou.
Como em tantas outras ocasiões que a história mostrou, o pretexto para manter as "conquistas da revolução" gradativamente se transformou em justificativa para o garrote. Falar mal de Fidel Castro ou da revolução era conspirar a favor do inimigo ianque, atraindo suspeitas contra si como contra-revolucionário. Aos poucos a herança sombria do cesarismo latino foi tomando conta do revolucionário, e o libertador de Cuba, o vingador dos cucarachas, virou num autocrata. A ilha-fortaleza de uma nacionalidade humilhada transformou-se numa ilha-prisão, tendo Fidel Castro como uma espécie de chefe da carceragem.
Viveu então do apoio material soviético enquanto a economia apresentava um quadro de desolação. A ilha pareceu ter sido congelada no tempo, um museu vivo dos anos cinqüenta. Com a fuga dos empreendedores para a Flórida só lhes restou então os burocratas do partido comunista e aquela imensa massa de gente pobre que nem muito ânimo para fugir tem.
Ainda assim, Fidel Castro não deixou de comparecer nas manchetes mundiais. Por quase cinqüenta anos era o Davi cubano enfrentando o Golias norte-americano. O titã Colossus, cuja projeção internacional sempre foi muito maior do que a ilha que governou, agora é um octogenário, as carnes se lhe foram, sua abismal energia se esvaiu, nada mais aguarda senão a hora da morte. É o espírito de rebeldia dos latinos que se amortece. Vira as costas para o mundo e dele se retira.
"Talvez minha voz se escute. Serei cuidadoso." (Carta renuncia de Fidel Castro:18 de fevereiro de 2008)
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