Destroços da igreja matriz de São Luís do Paraitinga, após a enchente
A lembrança é do jornalista e escritor Humberto Werneck. O poema "Morte das casas de Ouro Preto", de Carlos Drummond de Andrade, guarda uma associação quase mágica com os desastres provocados pelas chuvas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Tragédias sempre postas na folha corrida da chuva. Drummond, no livro "Claro enigma" (1951): "Nem parecia, na serra,/ que as coisas sempre cambiam/ de si, em si. Hoje vão-se. (...) A chuva desce, às canadas./ Como chove, como pinga/ no país das remembranças!".
"Onde se lê Ouro Preto, leia-se São Luís do Paraitinga. Ou Cunha. Ou Angra. Qualquer dessas cidades que se desmilinguem sob as chuvas deste começo de ano", sugere Humberto Werneck, autor de "O desatino da rapaziada" (no qual Drummond é personagem assíduo), de "O santo sujo" e do recém-lançado "O pai dos burros".
Leia o poema.
Morte das casas de Ouro Preto
Carlos Drummond de Andrade
Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não vêem. Também morrem.
Assim plantadas no outeiro,
menos rudes que orgulhosas
na sua pobreza branca,
azul e rosa e zarcão,
ai, pareciam eternas!
Não eram. E cai a chuva
sobre rótula e portão.
Vai-se a rótula crivando
como a renda consumida
de um vestido funerário.
E ruindo se vai a porta.
Só a chuva monorrítmica
sobre a noite, sobre a história
goteja. Morrem as casas.
Morrem, severas. É tempo
de fatigar-se a matéria
por muito servir ao homem,
e de o barro dissolver-se.
Nem parecia, na serra,
que as coisas sempre cambiam
de si, em si. Hoje vão-se.
O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
Que se incorporem as árvores
hoje vigas! Volte o pó
a ser pó pelas estradas!
A chuva desce, às canadas.
Como chove, como pinga
no país das remembranças!
Como bate, como fere,
como traspassa a medula,
como punge, como lanha
o fino dardo da chuva
mineira, sobre as colinas!
Minhas casas fustigadas,
minhas paredes zurzidas,
minhas esteiras de forro,
meus cachorros de beiral,
meus paços de telha-vã
estão úmidos e humildes.
Lá vão, enxurrada abaixo
as velhas casas honradas
em que se amou e pariu,
em que se guardou moeda
e no frio se bebeu.
Vão no vento, na caliça,
no morcego, vão na geada,
enquanto se espalham outras
em polvorentas partículas,
sem as vermos fenecer.
Ai, como morrem as casas!
Como se deixam morrer!
E descascadas e secas,
ei-las sumindo-se no ar.
Sobre a cidade concentro
o olhar experimentado,
esse agudo olhar afiado
de quem é douto no assunto.
(Quantos perdi me ensinaram.)
Vejo a coisa pegajosa,
vai circunvoando na calma.
Não basta ver morte de homem
para conhecê-la bem.
Mil outras brotam em nós,
à nossa roda, no chão.
A morte baixou dos ermos,
gavião molhado. Seu bico
vai lavrando o paredão
e dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.
(em Claro Enigma)
Terra Magazine
Um comentário:
ESSE POEMA ME FAZ REFLETIR NA VIDA... ELE É MUITO PENSATIVO ME FAZ REFLETIR...
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