terça-feira, 5 de janeiro de 2010
De tudo fica um pouco?
Por Carlos E. Faraco*
Leio agora, no meio da minha insônia, no portal Terra:
“Coronel que comandou invasão da PUC na ditadura militar morre aos 85”.
Não posso deixar de pensar: tantas outras coisas terá feito esse homem... terá feito filhos, terá tido netos, terá plantado uma jabuticabeira, terá dado uma ajuda financeira a um primo distante, terá, quem sabe, evitado a morte de um cachorro. Terá até justificado, intimamente, atitudes truculentas em nome de uma ideologia que, por alguma razão, abraçava com convicção.
Ao morrer, no entanto, o que ficou foi apenas e tão-somente o fato de ter comandado a invasão à reitoria de uma universidade. Simplesmente isso.
Não morreu o pai de fulano e fulana; o avô de fulano e fulana; o homem que plantou aquela jabuticabeira ali; o primo que ajudou outro primo em dificuldade. Tudo isso desapareceu e ficou do homem apenas o título de coronel e sua “façanha” maior: invadir uma universidade em nome de um governo ditatorial.
Não, eu não lembro como foi o Natal daquele ano de 1977. Eu não me lembro de quem desejou feliz ano novo a quem. Provavelmente houve um hiato na eterna luta ideológica, provavelmente não cristãos desejaram feliz Natal a cristãos e vice-versa. Provavelmente foi o mesmo clima de final de ano de sempre: os espíritos mais radicais se flexibilizam e tendem a se deixar levar -- ainda que por um minuto – pela noção racionalmente estruturada ou meramente intuída de solidariedade, respeito, honra, ética.
E, sobretudo, pela alegria.
A alegria meio irresponsável que permite sair mais cedo do trabalho, que permite beber e comer um pouco mais, que permite dar uma piscadela pra vida como que dizendo “ei, vida, estou te levando na boa”.
Mesmo para quem carrega uma cruz mais pesada, é comum que essa vibração leve a repousar por alguns minutos o instrumento de trabalho e a cantar, a desejar felicidade ao próximo, a repetir um ritual de todo fundamental, pois necessitamos de algum luxo e esse luxo pode ser apenas uma cor ou uma nota, como já disse alguém.
Foi assim em 1977, ano em que o Coronel Erasmo Dias comandou a invasão à PUC, e foi assim também neste final de 2009. Para quase todo mundo, inclusive alguns garis que desejaram, pela televisão, um ano feliz para todos.
Eu me lembro da invasão da PUC. Eu me lembro do coronel Erasmo Dias. O tempo desbastou a imagem dele, reduzindo-a apenas a um invasor de universidades. Foi assim que a história o marcou.
Talvez eu não esteja aqui para lembrar, mas tenho certeza de que a morte do cidadão Bóris Casoy será noticiada como a de um ser cuja dignidade desmoronou de todo ao tripudiar sobre aqueles trabalhadores que ousaram desejar feliz ano novo ao público e mereceram jornalista Bóris Casoy este brinde de final de ano:
“-- Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala de trabalho!"
Mais do que as acusações de pertencer ao CCC, mais do que sua nítida vocação para a subserviência ao poder, mais do que seus olhinhos espertos de ratazana, a lembrança que ficará da existência inteira do sr. Casoy será, certamente, a do episódio dos garis.
E será uma lembrança que para sempre cheirará à mesma merda com que ele não hesitou em rotular a alegria legítima e a solidariedade espontânea do outro.
Que merda, não?
*Carlos E. Faraco
São Paulo, Brazil
Professor aposentado, portanto com muito tempo para lamber. Ou lixar. Educador. Ferino. Escorpiano. Coroa.
Fonte Blog A língua lambe e lixa http://lingualambe.blogspot.com/2010/01/leio-agora-no-meio-da-minha-insonia-no.html?zx=34dbe0c7869c1f48
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