Então

domingo, 6 de junho de 2010

Um senhor equilibrista




Mônica Manir

Nicomedes é nome de porte. "Aquele que planeja a vitória", explica Tião. Também é nome de uma concoide, a concoide de Nicomedes, curva plana constituída por dois ramos situados em lados opostos de uma reta assíntota que intimida inclusive o dicionário. Na régua, Tião nunca planejou seu destino. Nascido há 42 anos em Assis, perdeu os pais aos 12, foi criado por uma irmã missionária de voto perpétuo, abandonou a Escola de Aprendizes-Marinheiros, virou churrasqueiro de churrascaria, pedreiro de obra, saqueiro da Zona Cerealista, candidato a atleta e chapa de caminhão. Mas não esperava ? nem de longe ? que seu destino envergaria como envergou em fevereiro de 2003, quando Sebastião Nicomedes de Oliveira caiu de uma altura de 6 metros na frente de uma loja da Rua Oriente, onde tentava emplacar o primeiro luminoso da sua recém-aberta Oliveira Arte Comunicação Visual. Sem nenhum aparato de segurança, ele ainda deu a boa sorte de bater num toldo, mas a má de receber por cima a placa, a furadeira e tudo o mais que seus colegas deixaram cair na tentativa ? diz ele ? de tentar segurá-lo. Em reta descendente, Tião raciocinou: "Não posso cair sentado, não posso cair de costas, não posso cair de lado, não posso cair de cabeça, tenho de cair de pé. Tenho de morrer em pé". Acordou na esquina da Oriente com a Dr. Ricardo Gonçalves sobre a mão esquerda dobrada em "Z", o calcanhar direito meio enviesado e a cabeça fora de prumo. Mas não tinha morrido na frente da loja?

Quase. A sem-vergonhice de seus colegas e do dono do estabelecimento o arrastou até a esquina, de onde ele mesmo pediu ajuda pelo celular. Os bombeiros, informados de que Tião havia sido atropelado por moto ou carro, o levaram para o Vermelhinho, o hospital do SUS Vereador José Storopolli, no Parque Novo Mundo. Ali hibernou por oito dias, sem um alô sequer de Simone, a mulher que chamava de noiva. Saiu com o braço esquerdo engessado até o sovaco e uma bota no calcanhar. Na mão livre, amostras de remédio e um pedido médico para cirurgia no Hospital São Paulo. O pé só estava trincado, mas o punho precisava de uma placa de platina. Tião se lembrava bem do endereço da sala na qual dormia e onde funcionava a sua Oliveira Arte Comunicação Visual, que, em pouco mais de uma semana, de sua já não tinha nada. Os funcionários levaram todo o maquinário e devolveram o prédio alugado ao dono. A alegação: Tião tinha ido desta pra pior.

Pascoalina, uma conhecida, ainda lhe emprestou R$ 60, que mal deram para a pensão. Sem mais valia, Tião caiu no mundo. A saída era seguir o estômago. Acabou se aboletando ao redor do Mercado Municipal, onde poderia viver de tomate, cenoura, melão, melancia, banana e o que mais despencasse das barracas. Porém a depressão era muita. "Para mim, eu era empresário e estava dormindo na calçada. Não queria aceitar a situação." Chegou a dobrar o corpo sobre a grade do Viaduto do Chá, mas tinha medo de morrer, mesmo achando que morto já estava. Sua bênção era a mão torta. Por causa dos antibióticos e dos anti-inflamatórios, não botou álcool na boca. Se tivesse uma convulsão, tomaria outro prejuízo.

Depois de dois meses, procurou uma irmã que mora em Caraguatatuba. Recebeu calor e comida, mas a dor no punho era insuportável e ele voltou à capital para tentar a operação. No vai não vai da saúde brasileira, refugiou-se num albergue, que para ele pouca diferença tem da rua, com a pessoa desligada a cada amanhecer. Enfim, a operação saiu. A fisioterapia ficou para o dia de são nunca. Tião entendeu que procurar os parentes seria pior. "Tem irmão alimentando os filhos e chega você, adulto, naquela situação complicada." Tocou a vida em duras temporadas alberguianas, sempre iluminadas pela escrita. Além de correr como um Forrest Gump, Tião gostava de cravar os sentimentos no papel. O primeiro atrapalhado que o viu escrevendo acabou se tornando seu anjo. No Parque Dom Pedro II, o tal andarilho mandou ver: "Letrado, escreve aí uma carta para a minha mãe". Então deu a ideia da literatura como profissão: "Ela pode mudar sua vida e pode mudar a nossa".

Em 2007, Tião escreveu o livro de poesias Cátia, Simone e Outras Marvadas, publicado pelo Coletivo Dulcinéia Catadora, que divulga material artístico produzido por moradores de rua. A Cátia é mistério, a Simone é aquela e, entre as outras marvadas, prima a bebida: "A pinga pede o corpo/ que pede o chão/ que pede o corpo/ que pede a pinga se o corpo cai". Tião também escreveu o monólogo Diálogo dum Carroceiro, interpretado pelo ator Antonio Carlos de Niggro e apresentado inclusive para o presidente Lula. Hoje o texto roda por espaços alternativos, com O Homem sem País, outro monólogo de Tião, estrelado por ele mesmo. No cartaz, a linha fina tenta explicar o título: "O que é cidade de origem para quem não tem mais para onde ir?"

Desova. "Quis dizer que o morador de rua muitas vezes não volta porque bate a vergonha de se apresentar à família como fracassado, o amigo de infância vai ver que a pessoa não virou artista", afirma. Além disso, o andarilho fica numa cidade só até ser descoberto. Então passa a ser cutucado e transferido de cá pra lá, de lá pra cá, em peruas de desova. "Hoje a principal rota de despejo no Estado é Campinas. Se ela não pode atender, os moradores são largados em São Paulo", afirma. Também por isso, pela movimentação incessante dessa população por vontade própria ou alheia, Tião questiona os números da última pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) sobre pessoas em situação de rua em São Paulo, divulgada nessa semana. O estudo foi feito entre novembro e dezembro, durante o verão portanto, quando moradores de rua descem para o litoral fugindo especialmente do abafo dos albergues. Ele também duvida do número de pessoas levantado pelo estudo ? 13.666. "São mais de 18 mil, a pesquisa se concentrou no centro de São Paulo e não considerou os desabrigados de outros bairros, como São Miguel, Santo Amaro, Penha, onde a população de rua cresceu muito."

Nesse momento Tião não fala como poeta, ator, dramaturgo ou enxerido, mas como um dos fundadores do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), formalizado após o massacre da Sé, em agosto de 2004, no qual moradores foram golpeados enquanto dormiam, sete deles mortalmente. Durante o assassinato, aliás, Tião recebeu ligações de desespero pelo celular vindos da praça. "No caso da Isabella Nardoni a perícia provou quem foram os assassinos. No caso do massacre..." Falando em traumas, ele parece ter superado a queda do andaime, tanto que trabalha em outra esquina da Rua Oriente como oficineiro na Casa Restaura-me, mantida pela ONG católica Aliança de Misericórdia, no bairro do Brás. A casa oferece atividades gratuitas de artesanato para os moradores de rua, que fazem brinquedos, tapetes, colares, porta-vasos. Tião fica por ali oferecendo material, sugerindo o que pode vir a ser divulgado no site da instituição, apartando desentendimentos, dando um norte para quem está perdido da silva.

Wellington chegou devaneado no meio da entrevista, de mochila murcha nas costas e saliva nervosa no canto da boca. Disse que tinham roubado seu telefone e seu violino, mas que ele toca de tudo, de flauta a reco-reco. É só dar a oportunidade. Está num albergue porque a coisa ferveu em casa depois de uma briga com o padrasto. "Foi um rato de mocó que pegou suas coisas, né?", perguntou Tião. Wellington fez que sim. "Esse vai ser prego por um tempão, até aprender a viver na rua", disse Tião, na saída do menino. Prego é a presa dos ratos de mocó, muitos deles ex-cadeieiros que habitam a região.

À saída da Restaura-me, lá estava Marcelo-médico-veterinário-em-situação-de-rua-nice-to-meet-you, alternando frases em inglês e francês, com leves erros de concordância. Tião alerta para as noias dos frequentadores do lugar, porém não descarta as verdades. "As autoridades tendem a achar que um morador de rua falando é como se estivesse louco, delirando ou mentindo." Ele não conhece Marcelo, mas se lembra de um médico diplomado que foi pra rua depois do desgosto de perder o filho numa mesa de operação. Fato é que também recorda uma mulher que se dizia Ana Paula Arósio, vinda da Itália nos braços do Gianecchini. Concorda com a pesquisa da Fipe quando ela diz que muito morador teve carteira assinada. "O problema é que vários desses nem sabem mais reconhecer o próprio nome na carteira."

Rumamos para uma rua que desemboca na Sé, onde Tião participa de um projeto de criação e pesquisa em fotografia chamado Trecho 2.8. O projeto é uma parceria do Instituto Brasis com o Instituto Gens e pretende, como afirma Edson Fragoaz, um dos responsáveis, "viabilizar condições para os adultos em situação de rua terem assegurado o direito à comunicação do que sentem e pensam". Nessa quarta-feira, nove deles sairiam novamente pelo centro para clicar com as máquinas digitais oferecidas pelo projeto. Edson sugeriu um único lugar para todos. Em vão. "A República? Cruel! Com aquela cegonha de ferro?"; "O Arouche? Qual a graça de flor de floricultura?". Saíram a esmo, mas com o compromisso de voltar às 16h30.

Muitos chegaram com fotos de passarinhos em busca de migalhas, belos reflexos distorcidos, flores desabrochando, esguichos psicodélicos, fachadas recortadas, cartazes de agências de turismo. "Não parece que estou em Paris?", sorri Márcio diante de uma Torre Eiffel estourada na máquina. Marilza trouxe novas encruzilhadas, como se estivesse a procurar seu canto, ela que veio do Maranhão atrás de peixes herbívoros. Poucos, como os três desta página, flagraram moradores de rua. Marli fez isso com maestria, mas não permitiu a divulgação. Está esperando o momento certo da glória.

Tião registrou um passado que às vezes revisita em busca de inspiração. "Passo a noite de boa na rua, o lugar me ativa a memória." O bolsa-aluguel, mais a bolsa do curso de fotografia, mais a grana como oficineiro, mais o cachê esporádico de O Homem sem País lhe permitiram alugar um quarto e sala na Penha. Em lan houses, ele atualiza seu diariotiao.zip.net, "o blog que mostra a realidade das ruas de São Paulo". Mora com seus livros prediletos: Germinal, A Revolução dos Bichos, O Diário de Anne Frank e outros que ganha em lançamentos. Filhos? "Achei que tive em duas situações, mas acabei brigando e, na incerteza, ficou assim." Namorada? "Tenho." Um tenho meio sem convicção. Mostra a foto dela no celular. "É uma psicóloga, a gente se conheceu numa festa na Vila Madalena, mas ela sempre foi classe média. Tem vezes em que não consigo acompanhar."

fonte:estadão

Nenhum comentário: