Se não fosse tão difícil internarmos indivíduos perigosos, Glauco e Raoni estariam conosco
GLAUCO MAL me conhecia, mas eu o conhecia bem: ele era presença familiar no meu café da manhã, a cada dia, há muitos anos. Dos personagens que ele inventou, em suas tiras na Folha, quais são meus preferidos? Gosto muito do silencioso Nojinsk, de Zé do Apocalipse e do Casal Neuras, mas Geraldão e Geraldinho são os que mais me tocam, talvez por serem retratos milagrosamente exatos da voracidade que é, hoje, um traço dominante, em todos nós, adultos e crianças. Por sorte, vou poder matar a saudade, pois os dois personagens ganharam coletâneas em livros (LPM e Companhia das Letras, respectivamente).
O assassino confesso de Glauco e de seu filho Raoni é um jovem de 24 anos, que frequentava a Céu de Maria, igreja do Santo Daime fundada pelo próprio Glauco. O jovem é ou era dependente químico e sofre ou sofria de transtornos mentais graves; pelo que entendi, havia a esperança de que ele encontrasse, no ritual do daime, uma saída -da droga e da desordem de seus afetos e pensamentos. Isso não impediu que, na noite do assassinato, ele se confundisse com um profeta ou com o próprio Jesus Cristo.
Às vezes, o convívio social proporcionado por uma igreja ajuda um drogado a abandonar sua dependência ou um louco a conter-se e a reencontrar algum equilíbrio mental. Essas "recuperações" são, de fato, precárias e incertas.
Cuidado, não estou minimizando apenas o poder terapêutico do convívio religioso. Critico o otimismo que nos leva a acreditar na possibilidade de transformações definitivas -pelo encontro com um deus, pela prática de uma religião, pelo uso de psicofármacos ou pela psicoterapia.
Esse otimismo é, provavelmente, um efeito da ideia cristã de que não existe um pecado que não possa ser esquecido e perdoado se o penitente for sincero. Na lista dos santos, muitos foram grandes pecadores, transfigurados irreversivelmente por uma iluminação ou pelo arrependimento. E o exemplo dos santos serve para afirmar que somos todos livres: suscetíveis de transformações radicais. A fé na possibilidade de cada um se regenerar é um traço central de nossa cultura porque parece ser uma condição da liberdade: nada do que somos hoje é definitivo, podemos mudar.
Agora, se a redenção é sempre possível, a decisão de excluir e prender se torna, para nós, envergonhada e culpada. É quase inadmissível internar um indivíduo perigoso na intenção de proteger a sociedade dos atos que ele poderia cometer, pois, internando, negaríamos o mantra segundo o qual a conversão e a redenção do indivíduo são sempre possíveis ou, por que não, prováveis. Em outras palavras, é impossível sancionar a periculosidade de um indivíduo, pois precisamos acreditar que ele possa mudar (para melhor, é claro).
Logo antes do Natal de 2009, em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Henrique de Carvalho Pereira, 21, foi golpeado brutalmente com um taco de beisebol por alguém que desconhecia. Seu agressor, em abril de 2009, tinha quebrado uma vitrina da mesma livraria, também a tacadas. Confuso, delirante e ameaçador, tinha sido preso e logo liberado, como se diz, após a assinatura de termo circunstanciado. Ninguém soube, pôde ou quis transformar aquela prisão em internação. Reconhecer que o homem era obviamente perigoso seria privá-lo da liberdade de mudar, não é? Pois é, se alguém tivesse reconhecido, sem culpa e sem vergonha, que é preciso internar um delirante de taco na mão, Henrique de Carvalho Pereira, em vez de permanecer em coma, ainda estaria circulando entre as estantes da Livraria Cultura.
Da mesma forma, o assassino de Glauco e Raoni deve ter dado mil sinais ameaçadores, que foram ouvidos por próximos, parentes, colegas e amigos. Segundo a polícia, há testemunhos que permitem afirmar que o assassinato foi premeditado, o que significa que, para alguém, a loucura do assassino não foi uma surpresa. Então, por que ninguém levou as ameaças a sério? Por que ninguém parou o assassino antes que matasse?
Pois é, se alguém tivesse dito ou até gritado que aquele jovem confuso era perigoso, dificilmente ele teria sido escutado. Ao contrário, os alertas seriam malvistos: você está querendo o quê? Prender o cara só porque está estranho, sem lhe dar uma chance de ficar melhor? Por esse caminho, continuaremos contando e chorando as vítimas.
O assassino confesso de Glauco e de seu filho Raoni é um jovem de 24 anos, que frequentava a Céu de Maria, igreja do Santo Daime fundada pelo próprio Glauco. O jovem é ou era dependente químico e sofre ou sofria de transtornos mentais graves; pelo que entendi, havia a esperança de que ele encontrasse, no ritual do daime, uma saída -da droga e da desordem de seus afetos e pensamentos. Isso não impediu que, na noite do assassinato, ele se confundisse com um profeta ou com o próprio Jesus Cristo.
Às vezes, o convívio social proporcionado por uma igreja ajuda um drogado a abandonar sua dependência ou um louco a conter-se e a reencontrar algum equilíbrio mental. Essas "recuperações" são, de fato, precárias e incertas.
Cuidado, não estou minimizando apenas o poder terapêutico do convívio religioso. Critico o otimismo que nos leva a acreditar na possibilidade de transformações definitivas -pelo encontro com um deus, pela prática de uma religião, pelo uso de psicofármacos ou pela psicoterapia.
Esse otimismo é, provavelmente, um efeito da ideia cristã de que não existe um pecado que não possa ser esquecido e perdoado se o penitente for sincero. Na lista dos santos, muitos foram grandes pecadores, transfigurados irreversivelmente por uma iluminação ou pelo arrependimento. E o exemplo dos santos serve para afirmar que somos todos livres: suscetíveis de transformações radicais. A fé na possibilidade de cada um se regenerar é um traço central de nossa cultura porque parece ser uma condição da liberdade: nada do que somos hoje é definitivo, podemos mudar.
Agora, se a redenção é sempre possível, a decisão de excluir e prender se torna, para nós, envergonhada e culpada. É quase inadmissível internar um indivíduo perigoso na intenção de proteger a sociedade dos atos que ele poderia cometer, pois, internando, negaríamos o mantra segundo o qual a conversão e a redenção do indivíduo são sempre possíveis ou, por que não, prováveis. Em outras palavras, é impossível sancionar a periculosidade de um indivíduo, pois precisamos acreditar que ele possa mudar (para melhor, é claro).
Logo antes do Natal de 2009, em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Henrique de Carvalho Pereira, 21, foi golpeado brutalmente com um taco de beisebol por alguém que desconhecia. Seu agressor, em abril de 2009, tinha quebrado uma vitrina da mesma livraria, também a tacadas. Confuso, delirante e ameaçador, tinha sido preso e logo liberado, como se diz, após a assinatura de termo circunstanciado. Ninguém soube, pôde ou quis transformar aquela prisão em internação. Reconhecer que o homem era obviamente perigoso seria privá-lo da liberdade de mudar, não é? Pois é, se alguém tivesse reconhecido, sem culpa e sem vergonha, que é preciso internar um delirante de taco na mão, Henrique de Carvalho Pereira, em vez de permanecer em coma, ainda estaria circulando entre as estantes da Livraria Cultura.
Da mesma forma, o assassino de Glauco e Raoni deve ter dado mil sinais ameaçadores, que foram ouvidos por próximos, parentes, colegas e amigos. Segundo a polícia, há testemunhos que permitem afirmar que o assassinato foi premeditado, o que significa que, para alguém, a loucura do assassino não foi uma surpresa. Então, por que ninguém levou as ameaças a sério? Por que ninguém parou o assassino antes que matasse?
Pois é, se alguém tivesse dito ou até gritado que aquele jovem confuso era perigoso, dificilmente ele teria sido escutado. Ao contrário, os alertas seriam malvistos: você está querendo o quê? Prender o cara só porque está estranho, sem lhe dar uma chance de ficar melhor? Por esse caminho, continuaremos contando e chorando as vítimas.
Doutor em Psicologia Clínica pela Universida da Provença (França), onde defendeu a tese "A Paixão de Ser Instrumento", estudo sobre a personalidade burocrática. Professor de Antropologia na Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos), e de Estudos culturais na New School of New York.
Colunista do jornal Folha de S. Paulo desde 1999, Calligaris é autor de diversos livros.
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