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quarta-feira, 18 de julho de 2012

'Granta' - Francisco Bosco


O repúdio à valoração é um sintoma quase onipresente na cultura


Francisco Bosco


A revista inglesa “Granta” acaba de lançar a versão brasileira de sua já tradicional antologia dos melhores escritores abaixo de 40 anos. A seleção tem provocado reações exaltadas, sobretudo no sentido de questionar a legitimidade da antologia (e sobretudo na internet, claro). Na semana passada fui a um debate no IMS que reuniu o editor da “Granta”, John Freeman, e o da “Serrote”, Paulo Roberto Pires. Logo que a conversa foi aberta à participação da plateia, Freeman teve que responder a uma série de questionamentos sobre, no fundo, o seu direito de declarar que tais e tais autores são os melhores do Brasil. Desvencilhou-se sem dificuldade, com o irrefutável argumento de que qualquer pessoa tem o direito de fazer e defender suas escolhas, assim como qualquer pessoa tem o direito de discordar delas. O argumento deveria ser óbvio a todos, mas o fato de que é preciso sempre repeti-lo revela um problema (para além das evidentes motivações ressentidas): atualmente, toda distinção hierarquizante é percebida como um ataque à ideia de democracia. Isso, por sua vez, baseia- se numa ideia equivocada de democracia.


É preciso que se defenda a existência de dois movimentos simultâneos numa sociedade democrática. Um movimento horizontal e outro vertical. O princípio da igualdade é horizontal; segundo ele, todas as pessoas são iguais perante o Estado, perante as leis. O princípio da diferença é vertical; segundo ele, todas as pessoas devem ter garantidas as condições objetivas para seu aperfeiçoamento próprio, para o seu engajamento no processo de se tornar melhor — melhor que si mesmo e melhor que seus pares. A ideia de diferença, numa sociedade democrática, deve portanto ser penetrada pela ideia de valor. A diferença não pode ser percebida e defendida apenas como se pertencesse ao mesmo movimento horizontal da igualdade, mas também como movimento vertical de distinção,de separação, de superação da  igualdade.


Em outras palavras, o que aí está em jogo é a coexistência de demos (povo) e áristos (o excelente, o melhor). É muito importante que a igualdade não procure anular a distinção. É somente por meio dos movimentos de autoaperfeiçoamento, que certos indivíduos se propõem como tarefa, que uma cultura avança — não no sentido do “progresso”, mas no sentido da ampliação da experiência humana, de revelar aos homens aquilo de que eles próprios são capazes.


O advento do mundo digital trouxe potencialidades democráticas inestimáveis de descentralização e igualdade. Mas a internet não deve ser defendida como o espaço-modelo da democracia sem hierarquias, e sim como o espaço-modelo do acesso mais livre, logo mais democrático, ao mundo dos valores. Que críticas como essas à legitimidade da “Granta” encontrem sua trincheira na internet, isso relembra o seu potencial de livre expressão e cultivo do ressentimento — agora ideologicamente justificado por essa ideia democrática equivocada.


Paulo Roberto Pires lembrou, durante o debate no IMS, de uma boutade que revela precisamente o fundo fisiológico desse questionamento pseudocrítico: “O título da ‘Granta’ deveria ser ‘Os vinte escritores brasileiros mais odiados pelos 200 outros que não entraram’”. Os duzentos outros, ou quantos forem, deveriam fazer como o escritor Felipe Pena, que organizou a sua própria antologia (embora ela não deixe de revelar, em seu subtítulo, uma nota de ressentimento com “a crítica”). Se essa antologia for boa, ela acabará por provar seu valor na cultura. Os processos culturais de hierarquização são múltiplos, contam com vários agentes. Nunca se deve questionar o direito de valorar desses agentes, mas sim os valores afirmados.


O repúdio à valoração é um sintoma quase onipresente na cultura. Arte interativa, programas do tipo “você decide”, a irritante “participação do internauta”, tudo isso revela um desejo segundo o qual é mais importante ser igual aos outros do que diferente de si mesmo. Pois eu recuso isso , e aqui exerço meu papel político de tentar convencer meus concidadãos a recusarem também.


A democracia é origem, não destino. Ela deve garantir o direito de todos os cidadãos à igualdade perante as leis e ao acesso a bens culturais e sociais (saúde, moradia, educação etc.). Mas essa igualdade deve ser o ponto de partida para que os sujeitos se engajem num processo de superação de si mesmos. Era assim na Grécia antiga, berço da democracia (é claro que se tratava de uma democracia falha, onde a “igualdade” era para poucos), como esclarece Hannah Arendt: “Pertencer aos poucos iguais significava ser admitido na vida entre os pares; mas o próprio domínio público, a pólis, era permeado por um espírito acirradamente agonístico: cada homem tinha constantemente de se distinguir de todos os outros, de demonstrar, por meio de feitos ou façanhas singulares, que era o melhor de todos.”


A hierarquia não ataca a ideia democrática; é antes parte constitutiva dela. Nesses tempos de “participação do internauta”, a postura provocativa e exagerada de Nelson Rodrigues ganha estatuto de antídoto: “Assim como o Zé Celso acha que o espetáculo nada tem a ver com o autor, eu entendo que o teatro nada tem a ver com a plateia. Só reconheço na plateia uma função estritamente pagante. Não devia nem ter o direito do aplauso. O aplauso já me parece uma exorbitância.”


fonte: O Globo 18/07/2012

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