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Paul Achcar
1) Glaciação
Em meados dos anos 1970, o líder político libanês Kamal Joumblat pressentia a evolução dos regimes árabes rumo a um sistema único, com "o pior dos regimes comunistas e o pior das ditaduras militares da América Latina". Pouco tempo depois, Joumblat caiu vítima das balas sírias do sistema que ele denunciava. A partir daquela época, a distinção entre monarquias conservadoras tribais e repúblicas progressistas militares – estabelecida com o nasserismo – ficou obsoleta, como se um sistema único, um despotismo afro-asiático de "tipo árabe” tivesse se instalado de modo inamovível. As repúblicas redescobriam suas raízes tribais e as monarquias se militarizaram. O comunismo sumiu, assim como as ditaduras latino-americanas. O mundo transformou-se, mas o universo árabe ficou congelado em um sistema único. Saddam no Iraque, Assad na Síria, Kadhafi na Líbia e muitos outros chegaram com um golpe de Estado, e nunca mais saíram do poder. Vieram para ficar, como se disse gentilmente. Salvo a morte, claro.
A tela do sistema único se fundiu: como os xeques e os reis árabes eram muitas vezes sucedidos pelos irmãos, os filhos aprenderam a derrubar os pais, como no Qatar. Os presidentes das Repúblicas, por sua vez, começaram a preparar seus filhos para o poder. Dessa forma, se forjou uma expressão nova, a "republarquia". O porquê desta glaciação remete a implosão do movimento nacional árabe com a derrota vergonhosa das repúblicas durante a Guerra de 67. Na falta de um projeto, todos os gatos viraram pretos, e a cegueira esta intensa, como diria Saramago… E nessa noite sombria, sem projeto ou alternativa, o islamismo (na suas mais diversas formas) preencheu o espaço deixado pelas oposições leigas (ou laicas). Ele parecia o último refugio para os pobres deixados na margem, um contra-sistema simples e eficaz, e o único que sobrava…
A história do mundo árabe a partir dos anos 1980 se reduziu a uma luta feroz e muitas vezes desigual entre o despotismo "republarquista" e islamismos tenazes. Com o decorrer do tempo e mais ainda depois de 2001, esses regimes se promoveram como fortalezas para conter o islamismo, que por sua parte se transformou na única oposição real, como se diz do "voto útil".
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Os acontecimentos da Tunísia acabam com esta história que se repete como um metrônomo desde décadas. É a única ruptura endógena – o exemplo iraquiano é uma ruptura exógena – na longa noite da glaciação árabe. Graças à Al Jazeera, entre outras, a cidadania televisiva árabe teve a sensação de sair de uma hibernação sem fim quando ela viu o temido Ben Ali, o chefe de governo militar que derrubou o histórico Bourguiba em 1987 com um golpe "medical", choramingar na televisão como uma criança e fugir dois dias depois.
2) Movimento
As televisões por satélite são muito importantes para circular a informação, mas não podem transformar o telespectador em militante. Geralmente, elas fazem o contrário. Muito devagar com a teoria do contágio. Se a questão é saber se existe em outros países árabes – Jordânia, Egito, Síria, Argélia, Líbia são os casos mais citados – condições análogas às tunisianas, a resposta é inequivocamente positiva. São muitos os países onde as condições são iguais, quando não piores em termos de miséria, desemprego, repressão e violação dos direitos humanos.
O Egito, esse gigante regional – um quarto da população do mundo árabe – mais que qualquer um. Infelizmente talvez, os povos (eles diferentes entre si) são submetidos à regimes concretos distintos e não a uma "republarquia" abstrata. Não dá para especular que "as mesmas coisas devem produzir os mesmos efeitos". Ou será que a redemocratização sul-americana foi o resultado de um contágio? Estímulo, talvez (exceto o pequeno Paraguai, depois da redemocratização do gigante Brasil).
De fato, a Tunísia é um país pequeno. Fica ao lado da Argélia que, no mesmo momento que a Tunísia, viu uma revolta contra o aumento dos preços dos alimentos, que acabou como acabam as revoltas deste tipo: com repressão ou na desistência do aumento. O desenrolar dos fatos tunisianos foi peculiar: um advogado desempregado trabalhava como vendedor ambulante de frutas e legumes. Um dia, um policial confisca seu carrinho, ele se queixa na delegacia, sai de lá humilhado e se imola pelo fogo. A revolta tunisiana começa depois, na repressão que surgiu durante seu enterro, o primeiro dos massacres na Tunísia.
E sintomático, mas também patético, que depois da fuga de Ben Ali, tenha começado uma onda de imolações pelo fogo na Argélia (oito casos) , Egito (quatro), Mauritânia (um) e até um em Marselha, França! Esta epidemia merece talvez ser chamada de contágio. A especificidade do "movimento" que derrubou Ben Ali da Tunísia – onde o celular, mais do que outras redes sociais, teve um papel decisivo na organização prática (pontos e horários para manifestações) do que na divulgação de informação – foi que sua expansão nas regiões antes de chegar à capital deu ao exército o tempo de amadurecer seu posicionamento, colocando-se contra a polícia e Ben Ali. A coragem magnífica do povo, que superou o medo ao preço de 100 mortos, foi suficiente para chegar até o dia de ver o ditador virar palhaço. Depois disso, de Ben Ali, ninguém mais teve medo.
Na Tunísia, o que possibilitou um desenrolar endógeno foi a população, pequena e homogênea, e também o fato de o país não ter petróleo. Como regime, talvez a Síria dos Assad, com seu sistema mafioso-militar que lembra mais o sistema Ben Ali. Mas Damasco tem também um perfil estratégico no oriente árabe que Tunis não tem no Magreb. Por tudo isso, pela especificidade (e a sorte) tunisiana, não vejo riscos de essa revolução se espalhar. Preocupo-me muito mais como a Tunísia sairá desse período. Porque sei que mais difícil que destruir a indestrutível fortaleza do medo, é depois, quando surgem os verdadeiros estragos da longa noite.
*Paul Achcar é jornalista e trabalhou como correspondente na América Latina para os jornais, alAkhbar, Al Hayat e As Safir e para as rádios árabes da BBC e de Monte Carlo alDuwaliya (a estação árabe da Radio France Internationale – RFI)
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