Então

sábado, 26 de setembro de 2015

domingo, 19 de julho de 2015

Incompreensão dos Mistérios -



Saudades de minha irmã
"[..]Sua morte faz um ano e um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício, que descuido
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia, Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco."
-Elisa Lucinda

domingo, 12 de abril de 2015

O SONHO DOS RATOS, por Rubem Alves




Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade.
Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade…Bem pertinho é modo de dizer.
Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho…Os ratos odiavam o gato.
Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…
Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…
- O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.
- Socializaremos o queijo, dizia outro.
Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções.
Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”…
Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era.
O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu.
Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem.
Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram.
Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si.
Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:
“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”.
Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido.
O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra.
Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.
“Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência!”
Rubem Alves – escrito em dezembro de 2004
Dica da Conti outra: Conheça o Instituto Rubem Alves e acompanhe seus projetos.

domingo, 8 de março de 2015

Roberto Pompeu de Toledo: ‘Qual morte?’ Publicado na edição impressa de VEJA


ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

Escolha sua morte preferida: (1) súbita, (2) longa, com demência, (3) longa, com idas e vindas no tratamento de um órgão doente, (4) câncer. O médico inglês Richard Smith cravou câncer, e causou comoção, não só entre seus leitores, na edição digital do British Medical Journal, como mundo afora. As quatro opções segundo Smith, que já dirigiu a revista em que hoje escreve na versão digital, esgotam, “essencialmente”, os modos de morrer. (“Suicídio, assistido ou de outra forma, é uma quinta, mas a deixo de lado por ora”, acrescentou em seu artigo.) Dos quatro tipos de morte, a pior, para ele – e para todo mundo, presume-se –, é a precedida pela demência. A da luta contra a degeneração de um órgão acaba contaminando outros órgãos, e compreende desesperadas tentativas de cura, muitos médicos, muitos hospitais, e arrastada agonia. Já morrendo de câncer, com a ajuda de convenientes doses de “amor, morfina e uísque”, argumenta Smith, “você pode dizer adeus, refletir sobre sua vida, deixar últimas mensagens, talvez visitar lugares especiais pela última vez, ouvir as músicas favoritas, ler os poemas mais queridos e preparar, de acordo com suas crenças, o encontro com seu fabricante (maker, em inglês; ele é ateu) ou o gozo do eterno esquecimento”.
Richard Smith contraria o senso comum dos nossos tempos, segundo oqual é preferível a morte súbita, e recupera o charme, se é que se pode dizer assim, da morte à antiga, com o moribundo rodeado de entes queridos. A morte súbita é identificada basicamente com o ataque cardíaco, e foi cantada por João Cabral de Melo Neto num poema inspirado pela morte do também poeta W.H. Auden, ocorrida enquanto dormia. Auden, segundo João Cabral, teria sido premiado pela morte“com a guilhotina, fuzil limpo, do ataque cardíaco”. Smith reconhece que a maioria das pessoas prefere a morte súbita. Ele costuma dizer-lhes: “Pode ser bom para você, mas pode ser muito duro para as pessoas à sua volta. Se você quer morrer de repente, viva cada dia como se fosse o último, assegurando-se de que os relacionamentos mais importantes estão em boa forma e os negócios estão em ordem”.
morte com charme à antiga é a dos romances do século XIX, época em que se morria em casa, não no hospital, e dos filmes ambientados no mesmo século. Se o moribundo for um aristocrata, ou grande burguês, morre entre coloridas almofadas, finos lençóis e, nos casos mais afortunados, cama com dossel. Modelo muito mais antigo é amorte de Sócrates, rodeado de discípulos e gastando filosofias. O problema é que o fim de Sócrates foi por condenação à morte ­ categoria não contemplada na tipologia de Smith. Ou seja: morreu no gozo da saúde. Já no câncer morre-se depauperado e com dores, às vezes horrendas – motivo pelo qual leitores do médico inglês reagiram com indignação, relatando desesperados casos de familiares. Ainda mais indignados ficaram por Smith sugerir aos governos que gastem menos com pesquisas do câncer e mais com as da demência e das doenças mentais.
Em reforço à sua preferência, Smith cita o cineasta Luis Buñuel, que confessou ter de início flertado com a ideia da morte súbita, para depois mudar de opinião. “Não tenho medo da morte“, escreveu. “Tenho medo de morrer sozinho num quarto de hotel, com minhas malas abertas e um roteiro de filme no criado-mudo Eu quero saber que dedos fecharão meus olhos.” (A propósito: a morte de Auden, cantada por João Cabral, foi num quarto de hotel, na Áustria.) Buñuel, que morreu de câncer, em 1983, nos conduz ao centro da disjuntiva morte súbita versus morteanunciada. A preferência pela morte súbita não é apenas pela ausência de dor; é também pelo desejo de poupar-se de encarar a fera olho no olho. Se a morte escapa da consciência, acredita-se, como que se escapa de morrer. Também se escapa da terrível questão do comportamento que se terá na hora fatal. Estarei pronto? Saberei encará-la com tranquilidade e serenidade?
Propor a escolha do tipo preferido de morte é um exercício fútil, claro. Escreve João Cabral, no mencionado poema: “Se morre da morte que ela quer. / É ela que escolhe seu estilo, / sem cogitar se a coisa que mata / rima com sua morte ou faz sentido”. O artigo de Richard Smith tem, no entanto, o mérito de fazer pensar na morte. Nos dias que correm reina a convicção de que o melhor é não falar nela. Quanto menos se falar, mais sossegada ela ficará em seu canto. Finge-se que ela não existe, na vã esperança de que ela resolva não existir mesmo.