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Um corpo que cai (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock |
André Setaro
Momentos inolvidáveis proporcionados pela chamada sétima arte. Momentos que ficaram na memória do cinéfilo. Momentos que ajudaram a formar o amante do bom cinema. Momentos inesquecíveis em suma.
1.) Quando Kim Novak sai do toilette já transfigurada em Madeleine, a pedido de James Stewart, é como se uma auréola que se impõe à imagem da mulher, imagem fascinante, que não parece real. Em seguida os dois se beijam e a câmara passa ao espectador a impressão de estar circulando ao redor dos personagens envolvidos no idílio amoroso. Enquanto ela, a câmara, circula, imagens outras aparecem e desaparecem no fundo, imagens do lugar onde Madeleine tinha se atirado. Ao ver Kim saindo, feito Madeleine, Stewart, emocionadíssimo, chega a chorar. A música, brilhante, de Bernard Herrmann, dá o tom adequado e a solenidade auditiva necessária. Um corpo que cai (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock.
2.) Os travellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos corredores, investindo na procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada. Nas imagens, a incursão na mente. Matéria de memória. O ano passado em Marienbad (L¿anné dernière a Mariebad, 1961), de Alain Resnais. Com roteiro do pai do nouveau Roman, Alain Robbe Grillet.
3.) A suspeita do espectador se faz através do ato criador do artista. Inventor de fórmulas, o artista criador procura sugerir ao invés de mostrar explicitamente. Diferentemente de obras que se apóiam nos efeitos, em que o recurso fácil ao susto é um dos sustentáculos do choque, nos filmes realmente criativos é muito mais a sugestão que encanta e faz suspense. É o ato criador do cineasta utilizando-se dos recursos da linguística fílmica, dos seus elementos constitutivos. Assim, Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite esteja envenenado e Cary vai matar a mulher. O artista colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo. Suspeita, de Alfred Hitchcock.
4.) O início lembra um clássico antigo do cinema: A turba, de King Vidor. O enquadramento dá idéia do formigamento de um escritório burocrático estadunidense, com suas mesas e máquinas de escrever e muitos funcionários trabalhando. Um simples enquadramento capaz de sugerir um escaldante depósito de homens e máquinas. Se meu apartamento falasse(The apartment, 1960) de Billy Wilder.
5.) No final do Cidadão Kane, morto Charles, o magnata da imprensa, suas coisas, no Palácio de Xanadu, são empilhadas para serem transferidas. Caixotes e mais caixotes, o cineasta faz com que a câmara execute um travelling para mostrar ao espectador a imensidão da herança de Kane. Mas, ao executar otravelling, a impressão que se tem dos caixotes é a de vários arranha-céus de uma grande metrópole. O efeito é perfeito. E a câmara, sempre em travelling, termina por parar numa imensa lareira onde o fogo começa a consumir o trenó de Charles menino no qual está inscrita a tão procurada palavra enigma de Rosebud. Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. 6.) No princípio, apresentando-se como mágico, com cartola e tudo, Welles diz que tudo que vai falar durante uma hora é verdade, mas a partir desta, o que contar a partir de uma hora de projeção de filme, é mentira. Assim, tem-se o relato sobre o falsificador Elmyr De Hory. E depois a história de uma musa que inspirou Picasso. A verdade sobre De Hory verdadeira. A história da musa é pura mentira. Brilhante exercício de cinema, um ensaio sobre a faculdade do artista em deturpar a arte e a realidade. E, principalmente sobre a arte da falsificação. Verdades e mentiras(F for fake, 1975), de Orson Welles.
7.) Quando Manoel mata o fazendeiro latifundiário por causa da exploração, o tom retumbante toma conta do filme com um ritmo de cavalgada que lembra John Ford. Os capangas do fazendeiro investem contra a modesta morada de Manoel, matando sua mãe. O clima é alucinante, com ritmo rápido, envolvente. O cinema se faz pleno. Deus e o Diabo na terra do Sol, 1964, de Glauber Rocha.
8.) Há quem diga que uma das sequências mais bem construídas da história do cinema seja a do concerto do Albert Hall de O homem que sabia demais (The man who know too much, 1954), de Alfred Hitchcock. Os planos, nesta sequência monumental, acompanham as notas musicais que são dadas a ouvir pela orquestra regida pelo próprio Bernard Herrmann, enquanto James Stewart percorre o teatro em busca do suposto homem que irá matar um mandatário de outro país. O toque de címbalo é o momento culminante, o clímax, dessa sequência extraordinária da história da arte do filme.
André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba)