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segunda-feira, 23 de setembro de 2013
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
O cidadão Teletubbie por Matheus Pichonelli
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Há um momento da vida em que o mundo ao redor é um amontoado de signos sem significados. Chama-se infância. Nessa fase, uma pedra não é uma pedra. Não tem sequer nome. É apenas um material disforme que simplesmente existe. À medida que aprendemos que uma pedra é uma pedra e não um ovo, passamos a assimilar a ideia de valor e grandeza. De significado, enfim. Leva tempo.
Mal resumindo, é assim que aprendemos a compreender o mundo, até então uma associação inicial e pouco sofisticada de ideias projetadas em sílabas repetidas vagarosamente. Como numa peça de Lego, encaixamos as sílabas “a” “ma” “re” e “lo” e associamos o borrão apresentado em um cartaz, ou na tevê, ao nome das cores. Vemos o desenho de um arco ascendente e alguém explica ser um “sor-ri-so”. E descobrimos que a bola de fogo a-ma-re-la de-se-nha-da é o “sol”. Daí o sucesso de programas como Teletubbies na formação dos nossos quadrúpedes (porque ainda engatinham) não alfabetizados. Peça por peça, eles aprendem a codificar o mundo. E se tornam adultos.
Nessa nova fase, aprendemos – ou deveríamos aprender – que existe uma infinidade de tamanhos, formas e cores de pedras, algumas com muito mais do que cinquenta tons numa mesma superfície, tenham elas nomes inventados ou não. Umas têm valor de uso, e servem para a guerra. Outras têm valor de troca, e vão parar nos pescoços mais endinheirados. Alguns dirão a vida toda que, não importa o que te ensinam, é sempre bom desconfiar de afirmações categóricas de quem jura que uma pedra é uma pedra e que isto não se discute. E se uma pedra é capaz de provocar tanto embate, o que não se vê e nem se toca é nitroglicerina pura. Ao longo dos séculos, o que dá dentro da gente e e não devia também recebe nome, valor e peso, mesmo sem ter forma nem espessura. Com base nestes nomes, criamos as leis (filosóficas, físicas, jurídicas e até sentimentais). São elas as responsáveis por regular as mais complexas, inconfessáveis, inacabadas, incompletas, mal diagnosticadas e muitas vezes inomináveis relações humanas. Alguns estudam estas leis. Por anos. Pela vida toda. Mais do que qualquer outro bípede, que a essa altura da vida já não engatinha.
No mundo ideal, seria prudente ouvi-los antes de tomar posição. Mas, no mundo real, ainda estamos conectando peças de Lego, as sílabas jogadas por variações de um mesmo Teletubbie que nos ensinou a falar quando nossa manifestação verbal era ainda gutural. Tornamo-nos bípedes, mas continuamos babando, repetindo com a boca e os olhos hipnotizados, com vozes vacilantes, as associações criadas neste grande programa Teletubbies que é a televisão, o rádio, a revista, o jornal, o meme de duas frases do Facebook e o e-mail da tia indignada: “ban-di-do”, “im-pu-ni-da-de”, “is-so-é-u-ma-ver-go-nha”, “cor-ruP-Tos”, "cu-ba-nos-mal-va-dos", "va-mos-a-ca-bar-como-a-Ve-ne-zu-e-la" (custa crer que alguns aprenderam a repetir as sílabas dos "embargos infringentes" sem a ajuda do lexotan).
As associações, muitas vezes, são criadas por cores ou rostos. Não é preciso saber o que é massa nem energia nem teoria nem relatividade para associar Albert Einstein a valores como “in-te-li-gên-cia”, “ge-ni-a-li-da-de”. Não é preciso sequer formular uma frase inteira. Basta repetir uma ideia pronta. Ou praguejar. Dizer se é bom ou ruim sem explicar os porquês. E dar sequência às reações coletivas, de manada, diante do vermelho. Ou do azul. Ou da foto um ex-presidente com barba. Ou de um ex-presidente sem barba. Não é preciso ler jornal, só a primeira frase do título; basta reagir diante de uma foto. Não é preciso sequer analisar o conteúdo. Nem diferenciar uma Constituição de uma capivara. Operamos, afinal, com símbolos prontos, acabados, imutáveis. E, assim, basta ao rockeiro boa-pinta colocar um nariz de palhaço para, como um bom Teletubbie, se comunicar com a sua plateia de Teletubbie: “bo-bo, “ban-di-do”, “sa-fa-dos”, “ca-na-lhas”.
Pensar pra quê? Ouvir o decano, ou quem quer que seja, para quê? Não importa o que se diga, nem em que se embase. No fim a única associação que conseguimos fazer do amontoado de palavras voadoras de significantes sem significados durante o voto de um ministro da Suprema Corte é que tudo é só uma grande "piz-za". Ou uma vitória da “de-mo-cra-cia”. Ou uma resposta aos “gol-pis-tas”. Ou uma “in-fâ-mia” à opinião pública que grita, sonolenta, "A-cor-da-Bra-sil" e sonha com o dia em que o Congresso e o Judiciário se transformem em um grande estacionamento privado. No país do “que país é este”, os porta-vozes da suposta maioria se ressentem pela “o-fen-sas” constantes de uma corte de 11 juízes que usam as leis para afrontar a “jus-ti-ça” e proclamar a “im-pu-ni-da-de”. Ou de 594 parlamentares, “pa-gos-às-nos-sas-cus-tas” para, "on-de-já-se-viu", criarem leis. Leis para quê? Dependesse dessa maioria de pensamento binário, todas as contradições e penas e direito de defesa se resumiriam a uma grande enquete. “Se você acha que eles erraram e devem morrer, curta. Se acha que devem ser linchados, compartilhe. Participe. A sua opinião é muito importante. O final, você decide”. Nesta forma curiosa de aprimoramento democrático, pensar é dispensável, mas grunhir, feito porco, é exercício pleno de cidadania.
“Não sei... mas as coisas sempre foram assim por aqui" Por Lenio Luiz Streck
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Dois bons exemplosEsta coluna não é “fácil” porque disputa espaço com o voto do ministro Celso de Mello. Espero que sobrem alguns leitores com paciência para lê-la.
No seminário da semana passada, meus alunos do mestrado da Unisinos trouxeram um exemplo para ilustrar, alegoricamente, o problema da crise de paradigmas, a questão do “novo e do velho” e do papel do senso comum teórico dos juristas. Os alunos falaram de Thomas Kuhn: A ciência não se desenvolve pela acumulação de descobertas e invenções individuais, mas por revoluções paradigmáticas, por processos de descontinuidade e recomeço. Assim, quanto mais pessoas eu conseguir convencer acerca dos problemas do velho e sobre as vantagens do novo, mais eu chego perto da ruptura paradigmática. Eis o papel da crítica. Mostrar as vantagens do novo e desvantagens do velho. Mas, é claro, isso não é fácil, porque os exércitos do velho são muito poderosos, especialmente por estarem quase sempre em posição dominante.
Dessa arte, parece-me interessante falarmos da crise de paradigma(s) que atravessa o Direito. As velhas concepções sobre ele obnubilam as novas concepções. O novo não consegue nascer. E nem se impor. Talvez o grande problema resida no fato de que o novo não consegue se mostrar. O velho é tão forte que vela as mínimas possibilidades de o novo aparecer através de algumas frestas de sentido. É como na alegoria do hermeneuta que chega a uma ilha e lá constata que as pessoas desprezam a cabeça e o rabo dos peixes, mesmo diante da escassez de alimentos. Intrigado, revolveu o chão linguístico em que estava assentada a tradição e reconstruiu a história institucional daquele “instituto”, descobrindo que, no início do povoamento da ilhota, os peixes eram grandes e abundantes, não cabendo nas frigideiras. Consequentemente, cortavam a cabeça e o rabo... Hoje, mesmo que os peixes sejam menores que as panelas, ainda assim continuam a cortar a cabeça e o rabo. Perguntado, um dos moradores o porquê de assim agirem: “Não sei... mas as coisas sempre foram assim por aqui!”.
O senso comum traz consigo uma falácia, a do mito do dado. Trata-se de uma falácia realista, de caráter objetivista, em que o sujeito está “assujeitado” à coisa. Não se pergunta sobre o mundo. O mundo está dado. As coisas são assim mesmo... Nem os macacos escapam desse “problema”, conforme mostraram os alunos. Com efeito.
A alegoria dos sete macacos!Há uma experiência interessante feita com sete macacos (essa história está na internet facilmente encontrável, sendo que faço, aqui, adaptações). Um grupo de cientistas colocou sete macacos em uma jaula. No meio da jaula, uma escada, e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia na escada para pegar as bananas, um jato de água fria era acionado em cima dos que estavam no chão.
Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros pegavam-no e enchiam-no de pancada. Com mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar da tentação das bananas.
Então, os cientistas substituíram um dos macacos por um novo. A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo retirado pelos outros, que o surraram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo já não mais subia a escada.
Um segundo macaco, veterano, foi substituído, e o mesmo ocorreu, tendo o primeiro substituto participado, com entusiasmo, na surra ao novato. Um terceiro foi trocado e o mesmo ocorreu. Um quarto, um quinto, um sexto e, afinal, o último dos veteranos, foram substituídos.
Os cientistas, então, ficaram com um grupo de sete macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam batendo naquele que tentasse pegar as bananas. Se possível fosse perguntar a algum deles por que batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria: "Não sei... mas as coisas sempre foram assim por aqui!"
Pois então. Que lição tiramos disso? Lembro, aqui, de uma coluna que escrevi no ano de 2012, em que relatei uma experiência. Contei que, depois de uma conferência que fiz sobre o livro O que é Isto – decido conforme minha consciência? um professor-doutor, depois de elogiar a palestra etc., disse-me: “Mas não adianta. Isso é assim mesmo. juízes decidem mesmo como querem. Nada há a fazer”. Pronto. Ali estava o protótipo de uma falácia realista. Pensei: de que adianta, então, estudar direito? Aliás, qual o papel do próprio direito, simplesmente legitimar quaisquer condutas que sejam julgadas adequadas pelo julgador? Tudo nada mais é do que simulacro de democracia oferecido para domesticar a malta? Se cada um decide como quer, temos que confiar na bondade dos bons...
Teremos que nos conformar?As perguntas que devemos fazer — e responder — são: sobra algo? Ou tudo é mesmo, “vontade de poder”? Fatos não há, só interpretações? Nietzsche tinha razão? Não temos como controlar, nem a partir da lei e da Constituição, “os atos de vontade” dos julgadores?
Vivemos tempos de relativismo. Tudo pode ser e tudo pode não ser. Cada um atribui os sentidos que quer. Mesmo que haja indícios formais apontando para determinado sentido, conformado pela tradição, surge alguém para dizer que “como tudo é relativo”, cada um tema a sua verdade... Afinal, “obedeço apenas a minha consciência”. A questão é: e eu com a sua consciência? Por que devo eu ou a nação brasileira, depender da consciência isolada (solipsista) de um julgador? Ora, não haveria aí uma contradição insolúvel, isto é, se tudo é relativo, é exatamente por isso que não devo acreditar em uma decisão (ou escolha) feita a partir exatamente da... relatividade? Elementar, pois não? Se tudo é relativo, inclusive o emissor da mensagem acabou de dizer algo relativizável... Isso é o que se chama de uma contradição performativa.
Somemos, ao relativismo, o senso comum e, bingo. Eis aí a fórmula para assentar o niilismo. Sim, porque a admissão do relativismo pode estar assentada exatamente no senso comum. Ou seja, é pelo senso comum que se sustenta que “isso é assim mesmo”. E, assim, vamos reproduzindo a vontade do poder... e dos poderosos, do andar de cima. O espaço para a crítica é diminuto. Por isso o status quoé tão difícil de ser alterado.
O erro do jornalista-filósofoSe busco sustentar que uma decisão judicial não pode ser uma escolha — e daí a minha crítica ao livre convencimento e teses “aliadas” — a resposta é que, queiramos ou não, não adianta fazer nada... “— Isso sempre foi assim por aqui...!” Aliás, que decisão seja (simples) escolha voluntário-ideológica é também recebida com “naturalidade” no campo filosófico. Pensam que o problema está só no direito? Ledo engano. Leio na Folha de S.Paulo coluna do filósofo Helio Schwartsman, intituladaAs cabeças dos juízes. Diz ele, depois de falar nos swing justices (juízes pêndulos) de que fala a literatura norte-americana: “Em tribunais, bem como em Parlamentos e na sociedade, a distribuição de opiniões costuma ser mais ou menos equilibrada. Formam-se dois grupos...”. Incrível um jornalista e filósofo pensar que uma decisão judicial é uma opinião... Pior: como se uma decisão de tribunal tivesse o mesmo caráter de escolha política feita pelos parlamentos. Ora, uma decisão não é escolha. Há responsabilidade política do juiz (ou ministro da Suprema Corte). Há que se comunicar ao jornalista que há, no mundo, vasta literatura sobre isso. Aliás, a grande luta das teorias contemporâneas é encontrar modos de controlar as decisões, que, de modo algum, podem ser manifestações e produtos da razão prática... Schwartsman caminhou muito mal. “Naturalizou” algo que temos que combater. Ou seja, a nação não pode ser refém da opinião pessoal de um Ministro. Se ele decide conforme seu gosto, esta(re)mos lascados. Pode até ser que seja assim que acontece... Mas não deve ser assim! Não fosse isso, e os franceses não teriam fundado a Escola da Exegese. E nem os alemães fundado a Jurisprudência dos Conceitos. E nem Habermas teria escrito sua obra... E nem Dworkin... Bem, não é preciso continuar.
O erro do juristaPreocupa-me, de todo modo, que um jurista acabe perigosamente trilhando um caminho próximo ao filósofo, confundindo decisão com escolha. Refiro-me a Oscar Vilhena, que, em artigo sobre o julgamento do Mensalão, disse: “Como todos os seres humanos, juízes têm intuições fortemente influenciadas pelas suas preferências conscientes ou inconscientes. Muitas vezes são influenciados por fatos aparentemente arbitrários, como hora do almoço. Assim, embora não seja desejável que juízes deem atenção às ruas ou às suas consciências na hora da decisão, o fato é que tudo isso é levado em consideração”.
Pois é. Como referi, preocupa-me não apenas a fala do ilustre e estimado dr. Vilhena, que, perigosa e surpreendentemente, relega a decisão jurídica a uma simples escolha produto da razão prática, como também passo a me preocupar com o almoço dos juízes (acrescento, nessa linha, o trânsito pelo qual passam os juízes, a bronca conjugal, o time de futebol que perdeu no domingo...). Segundo entendi, um almoço ruim pode mexer com a República... Pobre República, portanto. Pobre Ciência Jurídica. Na linha do texto de Vilhena, esperemos que o Min. Celso de Mello tenha feito um bom almoço no dia de ontem!
De todo modo, espero que não precisemos depender de (tantos) fatores exógenos e endógenos para uma decisão jurídica. A teoria do direito deve ter condições para colocar a disposição dos juristas uma criteriologia apta a preservar a autonomia do direito, ou seja, que uma decisão não dependa da subjetividade do intérprete. Enfim, esperamos que não venhamos a depender de ágapes e cardápios dos restaurantes dos Tribunais...
O senso comum e a LINDBE retorno. As práticas cotidianas do direito acabam sendo uma mistura do voluntarismo e do senso comum teórico. Com isso, não surpreende que no julgamento do Mensalão tenha sido invocada a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), essa lei com nome de chocolate, para sustentar a tese de que o regimento interno não foi revogado. Ou seja, a LINDB passou a ser o parâmetro e não a Constituição (se os embargos ainda “valem”, não é por causa da LINDB, com certeza!). Inclusive sendo parâmetro de interpretação da própria Constituição! Essa mesma LINDB que ainda fala em princípios gerais e “normas legais”. Somente um forte senso comum consegue sustentar o apego ao bem comum, aos princípios gerais e dizer um monte de obviedades, como se não houvesse nada mais importante a tratar em uma lei. Arriscaria dizer que essa LINDB é fruto de uma “improbidade legiferante”.
Na mesma linha: somente o senso comum consegue justificar o atual modelo de provas de concursos públicos e da OAB. Leio que o recente concurso do TRT da Bahia não teve nenhum aprovado para o cargo de juiz. Mas, então, o que estaria acontecendo com as Faculdades de Direito da Boa Terra? E os cursinhos de preparação, presenciais e onlaine (sic), falharam? Foi tudo um falhanço? São burrinhos os candidatos? São tão inteligentes os “perguntadores”? Mas, os perguntadores também não são professores? Houston, Houston, we have a problem. Um leitor da ConJur (advogado Alan Shore) “matou a pau”, ao postar o seguinte comentário: “Como Lenio Streck está cansado de dizer, concurso público hoje não tem mais a função de selecionar o candidato mais preparado para atuar no cargo e com maior conhecimento jurídico, mas aquele concurseiro profissional, expert em resolução de provas. Não é à toa que vários professores de cursinhos dizem que vários alunos, que na faculdade eram medíocres ou péssimos alunos, logram êxito nos concursos mais concorridos. A fórmula é fácil: preparação para RESOLVER PROVAS. Terminada a faculdade, compra-se livros esquematizados, simplificados e mastigados + matrícula nos cursinhos que dão os "bizus" + resolução de questões (pra saber como a "banca pensa" + decoração de informativos = aprovação certa. Resultado = Sentença fundamentado na opinião de Paola Oliveira na revista Marie Claire. É como dizia o saudoso Calmon de Passos = Para o candidato ser aprovado no concurso público, ele tem que emburrecer!” Clique aqui para ler o comentário.
A doutrina se entregou? Ou ainda tem volta?Tenho denunciado, há muito, que a doutrina não mais doutrina (como deveria). Se não doutrina, o que faz? Simples: presta serviço e se torna caudatária das decisões tribunalícias. Os livros utilizados nas salas de aula, nas bancadas dos Tribunais e fóruns e nos concursos repetem decisões e fazem pequenos comentários. Não discutem “o problema”, resignando-se a discutir “sobre o problema”, como uma falácia realista, repetindo o “mito do dado”. Doutrina ou “doitrina”? Dói quando ouço alguém chamar de “doutrinador” quem simplesmente repete trechos de ementas ou de lei, algumas vezes apenas invertendo a ordem das palavras da oração. Só para exemplificar: Imagine quais reflexões doutrinárias estaria efetivamente fazendo quem, ao dissertar sobre o artigo 5º, inciso LXII, dissesse que “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ninguém será considerado culpado”? Ou “ninguém será, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, considerado culpado”? Ou ainda “ninguém será considerado, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, culpado”? Gênio, não? Ou, ainda: Já disse o Tribunal X que legítima defesa não se mede milimetricamente; e que agressão atual é a que está acontecendo...
Os concursos públicos e a prova da OAB preferem perguntar sobre a posição de turmas ou Tribunais a respeito dos temas jurídicos. As posições verdadeiramente doutrinárias (e não as “doitrinárias”) perderam o espaço. E, quando indagam, é sobre o que determinado doutrinador (com aspas ou sem aspas) disse sobre... adivinhem? Uma decisão judicial, é claro. Por isso, os estudos aprofundados perderam o seu espaço. Viva o simples. E as simplificações. E os resumos. Mais os resumos resumidos.
Insisto: se o direito é aquilo que o judiciário diz que é, torna-se sem sentido o trabalho de milhares de faculdades e quase uma centena de programas de pós-graduação. Estamos fazendo apenas um simulacro. Um simulacro de enunciados e enunciações. Ficções. Nada mais do que isso. Quem tem dúvida, leia o projeto do novo CPC, que aposta na commonlização.
O voluntarismo venceuQuando a vontade superou a razão — refiro-me aos movimentos que, dialeticamente, superaram o exegetismo do século XIX — não se poderia imaginar, por óbvio, que, mesmo em plena democracia, as leis pudessem ser desprezadas em nome da interpretação. Pior do que isso, é a atuação pendular da doutrina e da jurisprudência (ou do conjunto de decisões), isto é, quando interessa à vontade de poder (ou à consciência individual do intérprete), a lei pode “valer tudo”. Já quando não interessa, a lei (lato sensu) pode nada significar. A questão é que o utente fica numa situação inusitada, porque não sabe quando o Judiciário julgará respeitando os limites semânticos da legislação, e quando julgará a partir de argumentos outros, como, por exemplo, argumentos meta-jurídicos ou com base em valores que flutuam como “fatores ontológico-objetivistas de correção da lei”.
Isso tudo tem uma agravante. Explico. Também o pretenso exegetismo é uma forma de voluntarismo. Simples, porque, quando interessa, usa-se a “letra da lei”. Mas esse “quando interessa” já é um ato de voluntarismo, do que resulta que a interpretação foi transformada em “vontade de poder”, disfarçada em vários nomes e codinomes.
As raízes do problema?Bem, as raízes disso podem estar em cinco recepções equivocadas, feitas pela doutrina brasileira, as quais venho me dedicando em palestras, artigos e livros. Não vou explicitá-las aqui, remetendo o leitor, por exemplo, ao recente Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. A primeira foi a Jurisprudência dos Valores alemã, importada de forma descontextualizada; a segunda foi a teoria da argumentação jurídica (Alexy), da qual pegamos apenas uma parte, a malsinada ponderação, gerando um paradoxo: Alexy elaborou-a para racionalizar a irracionalidade da jurisprudência dos valores... Só que, em Pindorama, juntamos as “facilidades interpretativas” de ambas as teses e fizemos uma gambiarra. A terceira foi o ativismo norte-americano, que lá não é um sentimento e, sim, fruto de contingências. Apaixonamo-nos pela tese e, hoje, pagamos o pato, ao ponto de judicilializarmos de tudo, até xampu para calvos e cremes para relações sexuais. Um sintoma disso tudo é o site do Ministério da Saúde, que tem um “manual” para exercitar o ativismo, ensinando como entrar em juízo contra a Viúva... A quarta recepção foi a velha metodologia do século XIX, com alguns puxadinhos hermenêuticos do século XX. Resultado: aquilo que tinha um sentido na Escola Histórica, transformou-se em “modelo” para justificar qualquer decisão no século XXI, o que se pode ver recentemente na decisão do MS 32.326 (caso Donadon). A quinta recepção equivocada foi o neoconstitucionalismo, ao menos na forma de aceitação acrítica do “poder” discricionário para superar o velho exegetismo. Setores do neoconstitucionalismo pensa(ra)m assim: se a moral está separada do direito no positivismo clássico, então coloquemos a moral para dentro do direito... E como fazemos isso? Com o poder discricionário e o uso de princípios, que, nesse sentido, não valores... Resultado disso? Olhem pela janela. Acho que não preciso falar mais do que isso.
De peixes, frigideiras, LINDBs, macacos e outros mitosUm problema só é um problema se eu souber que é um problema. Um mito só é mito para quem sabe o que é mito. Para quem não sabe, a questão do mito nem se coloca “como” mito. Esse “como” é o elemento hermenêutico de compreensão do fenômeno. Quem não sabe a origem do mito da frigideira (e do rabo e da cabeça do peixe), continuará fazendo o que sempre foi feito. E, como no caso dos macacos, continuará a surra daquele que quiser pegar a banana, mesmo que já não haja o castigo da água gelada. E continuaremos a fazer concursos públicos do mesmo modo. E os livros também continuarão a sua trajetória de minimização da cultura jurídica.
Sempre foi assim e sempre será... A LINDB, mesmo sob o paradigma constitucional, praticamente é uma cópia (mal feita) da velha Lei de Introdução ao Código Civil. Logo há(verá) uma nova tese, ao lado da interpretação de acordo com a Constituição: a interpretação conforme a LINDB. Quero dizer que não considero séria e digna de respeito uma lei que estabelece, no artigo 4º, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, em pleno constitucionalismo, como se princípios gerais fossem a mesma coisa que princípios constitucionais. Também não levo a sério a exigência de se decidir de acordo com o “bem comum”. O que é isto, o bem comum? Nada mais do que um enunciado para flambar decisões solipsistas. Outra: chama-se coisa julgada a causa da qual não caiba mais recursos... Não diga. Que genial, não? Nem o Conselheiro Acácio faria melhor. PS.: antes que algum incauto entre correndo na discussão, registro que, por óbvio, não descarto a importância de uma Lei de Introdução. Entretanto, não tem sentido uma Lei com pretensões de introdução às normas do direito... Como é que é? Introdução às “Normas”? O que é norma para os autores da Lei? E o que é Lei? Lei é igual a Direito? Como assim, cara pálida? O que é isto, a analogia? E os princípios gerais?[1] E por que a Lei de Introdução às Normas do Direito não fala na Constituição? Hein? Paro por aqui.
E sigo, para dizer que, nesse contexto, continuaremos a pensar que os princípios gerais, axiomas do século XIX, são a mesma coisa que os princípios constitucionais. E continuaremos a achar que princípios são valores. Claro. Com isso, podemos fazer um direito mais “fofo”, mais “mole”, mais “flambado”... E quando estiver em jogo uma interpretação mais complexa, deixemos de lado a Constituição e deixemos que o “bom intérprete” resolva tudo conforme “sua consciência”. Felicidades a todos!
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1] A alusão aos Princípios Gerais do Direito na LINDB e em julgamentos pelos Tribunais nada mais é do que a confissão de que não superamos aquilo que se pode chamar de “positivismo excludente”. E isso é muito grave... Mas, afinal, quem se interessa por isso?
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Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
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